sábado, 30 de novembro de 2013

Escrevo para expurgar o inexplicável

Pintura de Francine Van Hove


ESCREVO PARA EXPURGAR O INEXPLICÁVEL,
folgar o preenchimento, legitimar a causa,
esbater em palavras o efeito escravo
do silêncio, o voo enclausurado das asas
nas velas de cinza, no entalhe da folha
algemada a castiçais de preces



Escrevo na submissão do espaço, os sentidos
mudos do diálogo amotinado,
a estridência de clamor infinito, no movimento
ininterrupto, íntimo de espectros


Escrevo dentro dos contornos burilados,
o cansaço incabível do sono, o pavor da vigília
desprovida, desconcentrada, assaltada
de delitos


Escrevo-me e respondo-me, sucessivamente,
na demência encastelada de arrumação secreta,
encavalitada de arestas e de cumes,
no volume lascivo do fôlego


Escrevo-me e rescrevo-me, e resigno-me
ao silêncio revezado de gritos,
embezerrados


Escrevo-me e deito-me,
na amplitude pontuada, a cabeça
apenas, repousada nas virgulas,
a repisar as cismas nas pausas,
o clamor incandescente, tatuado,
na exaltação luminosa dos espelhos


E são as letras os meus sentidos
E são as palavras a minha música
O texto gradeado sobre branco
o meu avesso desgastado,
sulco e sombra


Assim, sou e impeço-me, desnecessariamente
verto-me, no decalque da tinta, neste dialecto
lácteo, insondado
que escrevo, leio, mas não domino,
ouso



Poema de Manuela Carneiro in
 Lector 



2 comentários:

Manuel Luis disse...

Escrever liberta-nos! Ler as suas escolhas, incentiva-me.
Abraço

Mar Arável disse...

É urgente ousar